O Transtorno do Espectro Autista (TEA) ou Autismo é caracterizado por dificuldades em áreas do neurodesenvolvimento como comunicação e interação social, além de apresentar comportamentos repetitivos, podendo ser inflexíveis, interesses e atividades restritos e alterações de percepção sensorial.
Atualmente, o autismo não é considerado uma doença, mas sim uma forma diferente de processar as informações. Devido à essa mudança de visão alguns autores sugerem usar o termo "Condição do Espectro Autista (CEA)". O termo "transtorno" é considerado estigmatizante e remete à ideia de doença, já o termo "condição" engloba melhor as dificuldades e potencialidades das pessoas dentro do espectro. Porém transtorno ainda é o termo mais utilizado na atualidade.
O autismo é diagnosticado com maior frequência no sexo masculino, sendo feito o diagnóstico 3 a 4 vezes mais em homens. A maioria dos pesquisadores concorda que existe influência do sexo nas características do autismo e que as mulheres sem deficiência intelectual associada podem "mascarar" suas características do autismo, fenômeno chamado de camuflagem.
A camuflagem consiste em comportamentos de cópia de alguns traços de personalidade e acontece para que a pessoa se adapte ao ambiente. Ela ocorre com mais frequência em situações sociais e não é exclusiva do sexo feminino. O mascaramento é mais frequente nas mulheres tanto pelas diferenças cognitivas que existem entre os sexos quanto por fatores culturais. Entre as meninas, há maior oportunidade de brincadeiras simbólicas (casinha, lojinha, boneca, escola…), ou seja, as " brincadeiras femininas" simulam situações do dia a dia. Outros fatores a serem considerados é que as mulheres têm uma tendência a corrigir o comportamento umas das outras e dão "dicas" do que é adequado em determinadas situações e, em sua maioria, verbalizam mais seus sentimentos e emoções, além de serem mais atentas às pessoas ao redor.
As mulheres dentro do Transtorno do Espectro Autista parecem aprender com maior facilidade habilidades sociais quando comparadas a homens autistas. Por mimetizarem expressões faciais, corporais, não terem a fala muito monótona ou "robotizada" as mulheres autistas aparentam ter melhores habilidades sociais, porém quando são analisados relatos publicados por mulheres dentro do TEA é notado que elas imitam os comportamentos neurotípicos (de pessoas sem autismo), mesmo sem entender por que o fazem. Referem esconder luta constante contra questões sensoriais, sentimentos de exaustão e desorientação por sobrecargas diárias, mas nem sempre exteriorizam tais sentimentos.
Normalização da diferença no sexo feminino
Nas mulheres, os comportamentos considerados "inadequados" geralmente não são atribuídos ao autismo, mas sim à timidez, recato, ingenuidade, imaturidade, desinteresse, desequilíbrio emocional, dentre outros.
Os interesses restritos no sexo feminino geralmente não são valorizados, sendo frequentemente atribuídos ao mundo de fantasia infantil habitual (ex. princesas, unicórnios, pôneis e animais em geral), o que pode confundir alguns examinadores, uma vez que podem ser consideradas brincadeiras imaginativas e, erroneamente, levá-los a descartar a possibilidade de autismo.
É comum as famílias procurarem profissionais de saúde, por um menino ficar muito interessado na roda do carrinho e girá - la sem efetivamente brincar. Transpondo para uma situação "feminina", as famílias geralmente não procuram atendimento por notar uma menina que fica muito tempo penteando os cabelos da boneca ou tirando e colocando a roupa da boneca, pois enxergam esses atos como brincadeira funcional e não observam mais detalhadamente como é o brincar feminino, logo, os interesses restritos e comportamentos repetitivos não são notados.
Principais características do autismo em meninas / mulheres
*não generalizar
Retraídas e mais passivas em relações sociais
Normalmente tem um ou dois amigos na escola
Na escola são mais distraídas e ficam mais "no mundo da lua", não incomodam
Podem fazer um esforço para evitar chamar a atenção para si
Tendem a ser silenciosas quando estão brincando
Podem ter bom contato visual efetivo
É comum parecerem desconfortáveis durante uma conversa
Normalmente se mantém controladas quando estão fora de casa e podem ser agitadas e explosivas em casa
Geralmente não são agitadas
Podem ser mal interpretadas e consideradas rudes
Tem menos estereotipias (movimentos repetitivos) que os meninos autistas
Se esforçam para se adequarem a padrões sociais
Podem socializar bem e depois ter uma saturação, necessitando de isolamento
Dificuldade em comunicação social que geralmente aumenta com a idade
Tendência à depressão e podem ter reações emocionais exageradas
São menos isoladas se comparadas a meninos autistas
Têm interesse em fazer amigos, mas não sabem como
Podem ter vocabulário bem desenvolvido
Melhores habilidades imaginativas se comparadas aos meninos autistas
Tem interesse restrito, mas geralmente não são temas ligados a tecnologia (geralmente são bonecas, princesas, celebridades, cavalos, moda, novelas, literatura...)
Podem brincar adequadamente com os brinquedos e participar de jogos
É comum brincarem com bonecas ou brinquedos por muito mais tempo do que a idade típica
Alto risco de desenvolver transtorno alimentares
Tendência ao perfeccionismo
Comportamentos rígidos e apego excessivo a rotina, veja exemplos abaixo:
- Sentar no mesmo lugar para se alimentar (à mesa)
- Arrumar a cama sempre o mesmo jeito
- Organizar, alinhar ou separar objetos em grupos (tamanho, cor, função)
- Rituais que parecem não ter função
- Gostar de brincar com os mesmos brinquedos
- Forte apego a determinado objeto ou brinquedo
- Apego excessivo a determinados tipos de roupas
Todas as características acima podem ser observadas tanto em homens quanto em mulheres, porém são mais frequentes nas mulheres com autismo leve. As meninas/mulheres com autismo moderado/grave ou com deficiência intelectual associada tendem a ter comportamentos mais semelhantes a meninos/homens autistas.
Diagnóstico tardio e ausência de diagnóstico
Meninas diagnosticadas precocemente, na maior parte das vezes, apresentam traços mais marcados do autismo e se enquadram na parte moderada a grave de espectro. Já as com autismo leve podem nunca ter diagnóstico ou recebê - lo muito tardiamente, geralmente recebendo vários diagnósticos antes de serem enquadradas dentro da Condição do Espectro Autista.
As mulheres com autismo têm uma taxa mais alta de condições associadas, sendo as principais: ansiedade, depressão, tiques, transtornos alimentares, TDAH, TOD. Devido às muitas comorbidades, nem sempre o autismo é considerado, pois os comportamentos são atribuídos apenas às condições associadas.
A maioria das ferramentas utilizadas para diagnóstico de autismo são baseadas em pesquisas feitas em meninos e homens autistas e não são adaptadas ao universo feminino, por esse motivo não são sensíveis o suficiente e permitem que mulheres com autismo "escapem"do diagnóstico.
Em 2017 uma equipe de pesquisadores dos Estados Unidos visitou várias escolas durante o recreio e observaram meninas e meninos autistas com idades entre 7 e 8 anos, e notaram que as meninas com autismo tendiam a ficar perto das outras meninas, já os meninos com autismo geralmente brincavam sozinhos. O comportamento de isolamento social que os profissionais de saúde e professores observam para identificar crianças dentro do espectro autista não pode ser o aspecto que norteia o diagnóstico (deve ser considerado, mas, no caso das mulheres, se o isolamento social não existir, ainda assim o diagnóstico deve ser considerado).
Outro estudo estadunidense que analisou o comportamento de mulheres autistas identificou que quase 80% delas já tinham usado estratégias para deixar seus movimentos repetitivos menos detectáveis. A maioria delas redireciona a energia para movimentos menos visíveis, fazem contração e relaxamento de músculos da coxa, apertam os dentes, movimentos "sugar" a língua ou ainda fazem movimentos socialmente mais aceitos como rabiscar, brincar com objetos embaixo da mesa, apertar e soltar um objeto (como caneta por exemplo). Algumas relataram sentar em suas mãos e cruzar as pernas para evitar as estereotipias, além de tentar restringir os movimentos para ocasiões que estão sozinhas ou apenas com familiares.
Essas estratégias de mascarar os comportamentos exigem um grande esforço mental e várias mulheres referem que, após um período de tempo camuflando suas características, necessitam de longos períodos compensatórios de recuperação e isolamento. Algumas mulheres referem sentir que suas amizades não são reais, pois seus amigos não as conhecem de verdade, relatando constante sentimento de solidão. Outras relatam que não sabem quem elas realmente são, pois passaram a vida imitando comportamentos e sentem que perderam sua identidade.
As mulheres com autismo diagnosticado tardiamente relataram que o atraso de diagnóstico provocou muito sofrimento, algumas relatam ter danos emocionais irreparáveis. Outro dado alarmante vem de um estudo pequeno realizado em 2016 várias mulheres com diagnóstico na adolescência ou idade adulta referiram ter sofrido abuso sexual, alguns estudos posteriores também referiram esse dado. Essa maior frequência foi atribuída a ingenuidade, o que torna essas mulheres mais vulneráveis.
O diagnóstico, mesmo que tardio, é libertador para a maioria dos autistas, especialmente as mulheres, pois algumas delas conseguem abandonar a camuflagem ou usar técnicas que não geram tanto sofrimento. Algumas relatam conseguir perceber quando o mascaramento está consumindo muita energia e fazem pausas para se recompor, referem ir ao banheiro, ir embora mais cedo de um evento ou simplesmente não se expor a determinadas situações que geram sobrecarga.
Citando uma amiga (A.M, 29 anos) que teve diagnóstico tardio:
"Diagnóstico é deixar de se sentir um ET, é parar de se esconder, é ouvir de todo mundo que depois que tive o diagnóstico fiquei mais autista, diagnóstico é pertencer a uma comunidade (não a que eu achava que pertencia), é aprender a cuidar de mim, é ter identidade."
O maior desafio atualmente é treinar profissionais de saúde (neuropediatras, pediatras, psiquiatras, psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e outros), professores, pais e a sociedade para identificar os sinais de autismo, tanto em meninos, mas principalmente em meninas.
Tratamento
O diagnóstico precoce é muito importante em todos os casos, porém na abordagem em meninas temos muito a evoluir. O que deve ficar claro é que o autismo não é uma doença, então não tratamos autismo e sim auxiliamos nas dificuldades apresentadas para a pessoa e sua família terem melhor qualidade de vida.
Abaixo a citação de S.A.M, 33 anos, uma grande amiga autista
"Antes do diagnóstico, nós nos sentimos deslocadas. Parece que todos receberam um manual de instruções sobre como relacionamentos interpessoais funcionam, menos nós. A impressão é que você vive se esforçando para encontrar a forma certa de agir, mas mesmo assim escuta o tempo todo que você é grossa, sem empatia, mimada, antissocial demais, individualista. São as mesmas críticas a vida inteira, então você se convence de que realmente é uma pessoa inadequada, ruim de verdade. Achar um profissional para o diagnóstico infelizmente ainda é um sacrifício, porque se você "funciona" (mesmo se não funciona bem), às vezes o profissional não vê sentido em cogitar o diagnóstico de autismo, eles mesmo agregam a uma carga de preconceitos. Você procura ajuda e vem outros nomes (como transtorno bipolar ou esquizofrenia), cujos tratamentos não ajudam e isso vai aumentando a frustração. Achar um profissional que realmente escute o que você tem a dizer e cogite o autismo muda a sua vida. Você vê que, se tivesse tido a oportunidade de descobrir antes, sua vida teria sido muito mais leve, teria uma carga de sofrimento muito menor. Você aprende mais sobre seus limites, aprende como lidar com as dificuldades impostas e aprende a se respeitar. Muitas de nós não temos essa oportunidade, o que pode levar a uma vida de auto negação e tentativas frequentes de suicídio. Espero que esse tema seja cada vez mais discutido, para que o diagnóstico seja cada vez mais precoce e as meninas com TEA tenham a possibilidade de se respeitarem e se desenvolverem plenamente, não passando por todas as crises que uma vida de negação pode causar."
Seguem dois vídeos da Psicóloga Kmylla Borges, ela é autista, faz vídeos ótimos que ajudam a entender os autistas.
Esse texto foi escrito por Benaia Silva, médica neurologista pediátrica. Para mais informações sobre a autora clique na imagem abaixo.
Referências
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