A seletividade alimentar e distúrbios alimentares são componentes relativamente comuns na rotina de crianças neurotípicas, entretanto, esses fatores se mostram agravados em crianças que apresentam Transtorno do Espectro Autista (TEA). Antes de adentrar essa realidade é importante destacar que esse campo está em constante transformação e, devido ao número limitado de estudos, não existe ainda conhecimentos cristalizados acerca do tema,
De modo geral, a seletividade alimentar provoca desequilíbrios na composição da dieta e tais desequilíbrios podem estar relacionados com problemas do trato gastrointestinal. Nessa linha de pensamento, alguns estudos provam a correlação significativa entre a gravidade dos sintomas e o grau de seletividade alimentar e problemas na hora das refeições. No TEA o “comer exigente” aparece precocemente e aumenta em uma velocidade maior que a observada em crianças com desenvolvimento típico. Além disso, essa aversão alimentar não resolve à medida que a criança se desenvolve, por esse motivo é recomendável que, aos primeiros sinais, os pais busquem ajuda de profissionais qualificados. Esses problemas devem ser sinalizados pois podem passar despercebidos durante uma consulta, já que padrões alimentares seletivos não, necessariamente, implicam um retardo de crescimento, e este é um marcador de déficits nutricionais.
Qual a origem desse desafio?
Problemas de alimentação em TEA são de origem multifatorial e se apresentam sem distinção de gênero ou faixa etária e se fazem presentes em quase 70% das crianças com TEA. Para entender, é importante ter em mente que todo processo envolvido no ato de se alimentar é bastante sensorial. Tendo isso em vista, vale ressaltar que crianças dentro do espectro têm dificuldades em processar esses estímulos sensoriais como o cheiro, paladar, toque, som e visão, podendo ser hipo ou hiperestimuladas, o que provoca na criança certos desconfortos. Assim, é possível identificar a dificuldade de flexibilização mental durante as refeições como: a resistência a alimentos novos ou não preferidos, de cores ou texturas distintas do habitual que culminam em momentos de raiva e estresse.
É comum que as crianças no espectro prefiram alimentos com baixo valor nutricional e ricos em gordura, sal e açúcar.
Essa tendência pode fazer com que a dieta seja pobre em proteínas e em micronutrientes, o que contribui tanto para a desnutrição quanto para maior risco de obesidade. Por isso é importante que a família esteja sempre em alerta para identificar essas falhas e buscar ajuda profissional!
A variedade de alimentos é importante não só para o desenvolvimento saudável decorrente da absorção de nutrientes, mas também para o fortalecimento ósseo e muscular da face (importante da mastigação e deglutição),portanto, evite dar doces e alimentos pouco nutritivos precocemente, principalmente enquanto eles ainda não pedem por isso. O que a criança ainda não conhece, certamente não lhe fará falta 😉
O que fazer?
Enfrentar a hiperseletividade alimentar não é fácil! Ao mesmo tempo que as famílias querem que suas crianças aceitem e gostem de uma dieta variável, eles se sentem extremamente pressionados a ofertar a quantidade necessária de calorias que a criança necessita. Esse medo de não estar oferecendo o necessário para um desenvolvimento saudável acaba, por vezes, impulsionando muitas atitudes que podem complicar muito mais o quadro da hiperseletividade como, por exemplo, correr atrás da criança durante refeições ou oferecer comida durante o dia inteiro. Forçar a ingestão de certo alimento que pode gerar maior aversão às refeições e a demanda constante deste também diminui o apetite e interesse da criança.
Logo, a hiperseletividade é um problema que necessita planejamento e persistência para ser enfrentado. Por isso, reunimos alguns passos iniciais que podem ser úteis nessa fase:
Não forçar criança a comer determinado alimento, pois pode agravar a irritabilidade, estresse e até a aversão;
Buscar ajuda de uma equipe multiprofissional que poderá trabalhar de modo a dessensibilizar a criança e identificar outras questões associadas;
Os responsáveis podem ficar atentos a respeito de alguns sinais como: perda de peso, comportamento na hora das refeições e sintomas gástricos como dores estomacais, desconforto abdominal, constipação, refluxo, identificação de alergia ou qualquer outra alteração fisiológica.
Atenção: Constipação é uma queixa muito frequente dentro do TEA. São 3 os elementos do TEA que aumentam a chance do “intestino preso”: dificuldades no desfralde, questões sensoriais relacionadas à evacuação no banheiro (sentar no vaso, barulho da descarga, “medo da água") e a dificuldade de transições e mudanças durante o dia (parar de assistir TV para ir ao banheiro). O que muitas pessoas não percebem é o quanto isso pode interferir no apetite e aceitação alimentar.
É muito importante ficar de olho nas fezes do seu filho, a consistência das fezes pode ser uma das maiores dicas para sabermos se ele é constipado ou não, na dúvida, busque um profissional. Para te ajudar a identificar esse problema, segue abaixo uma imagem de fezes de uma criança constipada:
Os tipos 1 e 2 indicam constipação e a criança deve ser submetida a algum tratamento e acompanhada por um profissional. Não negligencie esse sinal, conviver com a constipação pode desencadear uma série de outros problemas, inclusive o agravo do quadro de hiperseletividade.
O que a família pode fazer para reduzir a hiperseletividade alimentar?
Algumas atitudes podem ser experimentadas pelos cuidadores da criança, que ajudam bastante nesse processo como:
Criar uma rotina, horários e lugares fixos para a criança se alimentar. As crianças dentro do espectro lidam muito bem com rotina, isso facilita que elas se sintam seguras e confortáveis com essas etapas do dia e mais colaborativos para iniciar e interromper sem muitos conflitos.
Não deixar a comida disponível durante o dia todo. Use a previsibilidade das refeições e os intervalos programados para induzir um aumento do apetite e potencializar a aceitação durante as refeições
Criar um lugar adequado para a criança se sentar e comer, por exemplo uma cadeira alta com apoio para os pés ou uma mesa de tamanho infantil. Ficar com o pé pendurado ou em posições desconfortáveis a fará se sentir insegura e resistente a experimentação de novos alimentos.
Reduza o tempo da refeição a no máximo 15 a 30 minutos. Quando chegar a hora retire os alimentos e permita que seu filho siga para outras atividades.
Reduza as distrações: desligue a TV e o celular durante as refeições. Só a alimente quando ela estiver atenta e concentrada nos alimentos.
Permita que a criança participe do processo de preparo da comida. Peça que ela ajude. sentir o alimento nas mãos, o cheiro, a visualização cor é um importante passo para dessensibilizá-la
Uma dica seria dar um descascador de legumes (não cortante!) e peça que ela ajude, mesmo se ela não descascar nenhum legume a diversão e as sensações experimentadas irão reduzir a aversão a esses alimentos.
Recompense a criança quando ela aceitar uma nova comida, Reforço positivo é a essência no manejo comportamental do TEA, então não se esqueça de usá-lo para que ela se aventure outras vezes. Pode ser usado um adesivo ou mesmo um soprar de bolhas para fazer os olhinhos dele brilharem de satisfação, por exemplo. Use a criatividade!
Ignore comportamentos negativos, ficar chamando a atenção da criança por cuspir ou outros atos "indesejados" na mesa pode acabar tendo um efeito oposto, o de incentivar eles. Atenção, seja positiva ou negativa, acaba sendo um reforço.
Oferecer alimentos que a criança come e em porções menores os que ele ainda não come. Para ajudar, use a regra do 3: a cada refeição ofereça 3 alimentos para que a criança escolha pelo menos um ou dois que ela gosta.
A apresentação do alimento é muito importante. Então, se você quer aumentar o interesse da criança pelos alimentos faça algo divertido e que chame sua atenção. Transforme a salsicha em um polvo, corte a cenoura em formato de estrela, brinque com os alimentos e deixe que esse momento seja também de descontração, use a imaginação e se divirta junto com a criança!
Este texto foi produzido como atividade do Projeto Padrinho Med.
O projeto Padrinho Med foi idealizado pela médica Flávia Ju e tem objetivo de aproximar os médicos dos estudantes de medicina, promovendo troca de experiências e produção de conteúdo tanto científico quanto informativo à população.
Autora do texto: Silvia Sayonara
Acadêmica de medicina da UFS- Universidade Federal de Sergipe
Coautor e revisor Luis Paulo F S Dutra, médico neurologista pediátrico.
Para mais informações sobre coautor e revisor do texto clique no logo ao lado.
REFERÊNCIAS:
ESTEBAN-FIGUEROLA P, CANALS J, FERNÁNDEZ-CAO JC, ARIJA VAL V. Differences in food consumption and nutritional intake between children with autism spectrum disorders and typically developing children: A meta-analysis. Autism. 2019 Jul;23(5):1079-1095. doi: 10.1177/1362361318794179. Epub 2018 Oct 21. Erratum in: Autism. 2020 Feb;24(2):531-536. PMID: 30345784.
BABINSKA, KATARINA et al. “Gastrointestinal Symptoms and Feeding Problems and Their Associations with Dietary Interventions, Food Supplement Use, and Behavioral Characteristics in a Sample of Children and Adolescents with Autism Spectrum Disorders.” International journal of environmental research and public health vol. 17,17 6372. 1 Sep. 2020, doi:10.3390/ijerph17176372
BAXTER, BROOKE et al. “Parent’s Guide to Feeding Behavior in Children with Autism”.2014, p-5 Material produzido pelo Autism Speaks e disponível no link: Exploring Feeding Behavior.pdf (autismspeaks.org)
Comments